A bulimia como ressonância dos destinos possíveis da sexualidade na clínica contemporânea
21/01/2023
"A bulimia como ressonância dos destinos possíveis da sexualidade na clínica contemporânea" foi o tema do capítulo que integrou o livro do CEPdePA intitulado SexualidadE, lançado em agosto de 2019.
Neste texto a proposta consistiu em fazer um recorte de um dos possíveis destinos da sexualidade em uma patologia dita atual, qual seja, a bulimia. Para tanto, destacou-se o papel do autoerotismo, do narcisismo e do excesso pulsional, que impossibilitam a representação, produzindo o ato bulímico.
As "novas formas" de padecimento, na atualidade, na verdade, não são novas, pois sempre existiram expressões de sofrimento psíquico, os quais não tinham acesso à representação. O que chama a atenção é que, na contemporaneidade, tem sido frequente a emergência de sintomas nos quais a elaboração psíquica cede lugar à ação, o recalcamento é substituído pela clivagem e as fragilidades narcísicas ganham o centro da cena. Nesse sentido, a bulimia pode ser pensada como uma expressão do sofrimento na clínica contemporânea, na qual o recordar é substituído pela ação, e a pulsão é descarregada diretamente no ato (comer compulsivo e purga) e no corpo.
Bulimia e excesso pulsional
o exame do predomínio do investimento da libido no autoerotismo, no narcisismo e na modalidade de relação objetal é apresentado como um balizador para a compreensão da bulimia como um destino possível da sexualidade na contemporaneidade.
Segundo o modelo freudiano da fixação e da regressão da libido, a bulimia pode ser compreendida como correspondendo às manifestações psicopatológicas da subjetividade referidas à oralidade. Estas relacionam-se ao nível arcaico da organização das relações de objeto e do narcisismo, expressando-se por meio da devoração e da expulsão.
Além do autoerotismo, também está presente na bulimia uma fixação libidinal no nível do narcisismo.
A bulímica não consegue abandonar esse ideal narcísico para aceder à castração e conquistar o ideal de ego. Frente a essa dificuldade, a imagem do corpo vem a ocupar uma posição central na regulação narcísica, representando um ponto de fixação libidinal importante (JEAMMET, 1999a) e exercendo um papel praticamente exclusivo e determinante da autoestima (BRUCH, 1973; ZUKERFELD, 1996).
A excessiva preocupação com a imagem do corpo, associada à busca do ideal, deslocado para a imagem do corpo ideal, leva a bulímica a atuar seu sintoma às escondidas, num ato solitário de preencher-se e, logo em seguida, livrar-se de tudo. Assim, expressa em ato sua conflitiva, que fica circunscrita na imagem do corpo.
Com o predomínio do autoerotismo e do narcisismo na economia libidinal, a bulímica apresenta um excesso pulsional que não consegue ser representado simbolicamente e se expressa por intermédio do excesso alimentar (ato bulímico). A dificuldade de simbolização e de elaboração psíquica produz uma descarga direta do excesso pulsional como uma derivação ao corpo. Desse modo, as sensações corporais ocupam o lugar das representações.
As carências narcísicas e as falhas identitárias provocam prejuízos ao funcionamento psíquico, não favorecendo a simbolização e a elaboração, desencadeando a livre descarga no corpo e evidenciando as formas de subjetivação na atualidade. O sofrimento contemporâneo apresenta-se às margens da conflitiva preponderantemente neurótica. O imperativo da renúncia pulsional destacado por Freud (1930/1929) através dos sintomas neuróticos foi substituído pelo imperativo da satisfação desmedida. O processo de recalque do pulsional sofre significativas falhas, dando lugar à descarga sem mediação representacional.
Na bulimia o destino do afeto é dramático, consistindo na angústia desligada, automática, sem condições de ser representada, desencadeando o ataque bulímico que surge diante da impossibilidade de poder suportar o vazio que a angústia aponta. O ataque compulsivo ao alimento é uma tentativa de preencher essa falta. Nesse sentido, a bulimia pode ser pensada como uma das estratégias criadas para evitar a angústia, correspondendo à proposta da cultura contemporânea, que convoca o sujeito à evitação da falta e da angústia, através da promessa da satisfação constante e permanente.
No padecimento da bulimia, pode-se pensar que o destino da sexualidade se expressa pelo “retorno ao próprio eu” enunciado pela predominância do investimento no corpo e associado à exacerbação do narcisismo na cultura atual. É sobre a materialidade do corpo que são realizadas tentativas de inscrição do que não teve acesso à simbolização. Assim, o sujeito tenta tramar sua história convocando a concretude do corpo.
O arcabouço teórico da psicanálise, no que tange à sexualidade, segue vigente para a compreensão do funcionamento psíquico do sujeito contemporâneo e de suas manifestações do sofrimento psíquico. Entretanto, no território da prática clínica, o psicanalista encontra impasses no método da associação livre e da interpretação, devido às falhas no processo representacional. Assim, o psicanalista se vê instigado e desafiado a novas configurações para sua prática, que exigem compreensão e manejos singulares.
Leia o capítulo na íntegra acessando o LINK em PDF.
2019/Ago
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